Por Jaqueline Stori – 06/11/2021
A importância e a necessidade de preservar a natureza em todas suas particularidades, vem sendo discutida e alertada há décadas por diversas Instituições internacionais, cientistas, núcleos de estudos, governos, empresários e chefes de Estados mundiais. O mundo debate, conversa, fala sobre o assunto, faz campanha de conscientização, e no entanto a cada dia vemos que as mínimas ações destinadas a este propósito não estão resolvendo quase nada nos impactos negativos que repercutem na natureza e automaticamente na qualidade de vida do homem e do planeta. Lamentavelmente, é escancarada a falta de interesse e comprometimento com a preservação e recuperação do meio ambiente em todo o mundo. Na realidade vivemos um jogo de empurra onde um governante vai empurrando para outro, uma empresa para o outra, uma Instituição para outra, uma pessoa para a outra e no final, as resoluções de conscientização tão debatidas por todos terminam mesmo em bonitas falácias, apenas.
Infelizmente a situação se agrava a cada ano e aqueles que vemos prometer mudanças em grandes convenções internacionais, continuam apenas fingindo que vão fazer algo de concreto e na realidade nada fazem, salvo raríssimas exceções. Mas, o que seria do nosso planeta se não fossem as raríssimas exceções? Certamente a situação estaria pior, não é mesmo? O acúmulo residual por exemplo, é um dos principais (se não o principal) fatores que mais prejudicam a conservação do meio ambiente. Diariamente são descartados como lixo toneladas de resíduos que poderiam ser reutilizados para consumo. Diferente dos rejeitos os resíduos quando trabalhados, não só voltam para o reaproveitamento como também podem ser transformados para outros fins de consumo.
Graças ao perseverante e árduo trabalho de diversos profissionais dos mais diferentes setores, desde os catadores de materiais recicláveis, artistas e designers de móveis, muitos resíduos são transformados em belíssimos mobiliários, objetos de decoração e maravilhosas obras de arte. E é sobre obras de arte oriundas do que ainda é estigmatizado como lixo, que apresentamos para vocês o trabalho de uma das maiores artistas visuais brasileiras, que através da sua arte, atesta que do “lixo” podemos ir para o luxo e ainda colaborarmos com a saúde do nosso planeta.
Estamos falando da artista Sandra Lapage nascida e residente da cidade de São Paulo, formada em arquitetura e urbanismo pela FAUSP, com mestrado em artes visuais numa escola de Portland (E.U.A), cujo diploma chama-se “Master Of Find Arts In Studio Arts, que é reconhecido no Brasil pela USP, como “Mestrado Em Poéticas Visuais”.
Sandra Lapage nos contou que desde muito nova sempre teve apreço por atividades que a entretinham e que por isso desde sua adolescência resolveu se entreter com atividades ligadas a arte como o desenho, por exemplo. De personalidade introspectiva a artista disse que sentia determinadas atividades não só como exercício de criatividade, mas também como sua companhia: tinha paixão em mexer, manipular os materiais. E paralelamente havia em mim muita vontade em me expressar através de vestimentas. Gostava de desenhar em calças jeans, rasgar tecidos para depois costurá-los, ornamentar cabelos com tecido, decorar meu quarto com adesivos nas paredes, das maquiagens… Enfim, eu tinha uma deliciosa relação de convivência comigo mesma, confessou a artista.
No entanto, na fase adulta resolveu iniciar no curso de arquitetura e por tal razão distanciou-se das atividades artísticas que realizava, pois dedicava maior tempo ao curso e a profissão, após ter se formado. Trabalhou com design e arquitetura durante algum tempo, porém, a pulsante alma de artista se fazia latente em seu interior e aos 30 anos de idade, Sandra Lapage retoma às suas atividades artísticas e passa a dedicar-se integralmente à elas. Retoma primeiro a pintura (que desenvolveu em casa), depois a gravura no metal, onde a partir desta começou a fazer xilogravuras. E foi através da xilogravura que a artista disse ter chegado a uma grande descoberta de materialidade, com o corte na madeira. Segundo ela, a xilografia foi um meio de chegar à materialidade pura da reinvenção de materiais e objetos que estavam a sua volta. Todavia, apesar de ter se dedicado alguns anos a esta descoberta e os resultados positivos de criação e reinvenção proporcionados pela xilogravura terem sido satisfatórios para suas pesquisas e processos artísticos, Sandra Lapage sentia que esta ainda não era sua maior paixão.
A artista confessou que em determinada fase passou por um confronto consigo mesma, porque apesar de usar materiais recicláveis tradicionais como o papelão em seus trabalhos, ela sentia que também criava muito acúmulo, principalmente após o final de uma Residência de 6 meses em Nova York, onde teve oportunidade ao final da mesma, de realizar uma Exposição Individual de curto período e que ao término desta se confrontou com o problema sobre o que faria com todo aquele material? Como seria possível trazer tudo para São Paulo? Sandra contou que teve que jogar muita coisa fora e que este descarte lhe causou imenso pesar, sentindo-se éticamente muito responsável por tudo aquilo.
Confrontos consigo mesma, vontade de fazer ainda mais pelo meio ambiente, fazer arte com materiais recicláveis e assim poder levar não só conscientização e exemplo, como também realização pessoal e artística, fizeram parte do mundo interior da artista durante algum tempo, até que um dia em visita a uma Exposição, Sandra Lapage se depara com uma obra de arte do artista El Anatusi, de Ghana, cuja obra foi para ela um start para chegar ao ponto de sentir que era aquela a sua maior paixão: quando me deparei com a obra de longe, fiquei encantada com seu deslumbre, com seu luxo e com o que ela ia me transmitindo. A medida que ia me aproximando da obra sentia uma ligação cada vez mais forte com a mesma. Quando fiquei cara a cara com ela, fiquei encantada porque todo aquele luxo vinha de materiais reciclados como selos de alumínio de garrafas de destilados, e ao mesmo tempo, apesar do luxo, a obra tinha uma certa rudeza com os materiais reciclados. Aquilo me fascinou muito e foi de onde tive a inspiração que veio completar o conceito material e imaterial que eu queria aplicar no meu trabalho, explicou a ela.
Como a própria disse, a inspiração no uso da diversificação de materiais descartáveis foi desperta quando viu este trabalho, que além de toda inspiração e influência também a fez tomar um caminho que há muito tempo queria, que era o de criar grandes Instalações e poder convidar as pessoas para adentrarem no espaço expositivo para que as mesmas pudessem vivenciar ou experimentar o embate físico com a obra.
E que bom para a arte brasileira, para a arte mundial e também para o meio ambiente, que Sandra Lapage segue suas inspirações, intuições e influências. Graças a sua paixão em fazer do “lixo” o luxo, que nós o público, podemos nos deleitar com luxuosas obras de arte, conceituadas na preservação ambiental. Mas, o conceito da arte desta grande artista, não se resume somente na preservação ambiental. Sandra Lapage vai mais fundo com a materialidade de suas obras, trazendo a tona discussões como o excesso de consumo, produção em larga escala e por conseqüência o descarte do mesmo na mesma proporção.
A artista assegura que suas obras são feitas de impureza, de erro, de fracasso, de insubordinação, de desmesura e de acúmulo orgânico: eu utilizo o que já existe. E é com o acúmulo dos materiais que eu apresento a evidência de uma civilização em crise populacional, ética, ecológica e moral, afirmou ela.
E de fato, no fundo sabemos que o maior problema são nossas ações. Por isso, quando nos deparamos com a grandiosidade (material e imaterial) das obras dessa talentosa artista, fica também o abalo causado pelas mesmas, ao mesmo tempo em que somos levados a pensar o quanto nossas atitudes refletem na nossa saúde mental e física tanto positiva quanto negativamente.
As obras de Sandra Lapage carregam especial visceralidade atrelada a um contexto verídico que nos “força” inicialmente à transformação do eu interior para que este aflore no externo, devido sua forma dúbia de nos proporcionar diretamente e objetivamente um choque de realidade sobre o que somos e o que fazemos. Esta dubiedade constitui-se de uma força que ao mesmo tempo mostra sua fragilidade com qualidades envolvendo ações e pensamentos humanos que ordenam ou não, o nosso equilíbrio moral, ético, espiritual e psicológico, somadas às narrativas poéticas que dialogam harmoniosamente com toda a proposta oferecida por sua arte dentro de diferentes e variadas composições de linguagens que se completam entre si, permitindo sempre o término e o início dos diversos ciclos existentes no que se refere ao comportamento social.
Arte de estética luxuosa as obras de Sandra Lapage, além de serem únicas, são produzidas em sua maioria com cápsulas de café e fios de cobre, além de outros materiais como embalagens tetrapak, plástico pet, papel de bola entre outras matérias primas que sua criação lhe permite. Materiais recicláveis acompanhados por uma variada paleta de cores quentes, fortes e sóbrias que atenuam ainda mais o requinte de suas obras, culminando em grandiosas e belíssimas estruturas metálicas que se comportam como tecidos leves. Seu trabalho de produção tem a raiz do tear, do bordar, do moldar e do esculpir. Suas obras, com características hibrida, podem ser esculturas de paredes, máscaras, vestes ou (e) acessórios ou podem ser um tipo de tapeçaria, que se desdobram em sensacionais instalações, fotos, performances, vídeo-arte e outras verves.
À parte de sua paixão, contribuição e responsabilidade para com a saúde do planeta, Sandra Lapage tem também como uma de suas afcções de incentivo às suas criações, obras de outros artistas e também segmentos artísticos. Uma delas é a literatura e em particular as obras do escritor “Jorge Luiz Borges”, que lhe rendeu uma série esculturórica ou de instalações fascinantes, denominada “Mantos Cortantes Para Xamãs Desesperados”.
A artista contou que antes desta Série chegar ao conceito que hoje possui, ela passou por uma fase inicial que era realizada mais como uma brincadeira: no início, antes d’eu ter meu click de criação, eu via que o feitio dos mantos iam aparecendo nos trabalhos não como um projeto destinado a produção de obras neste formato, mas sim pensando estes mantos nos seus usos simbólicos para diferentes tribos, culturas e religiões. Conforme eu ia criando os mantos, percebia uma ligação e que depois concluí que foi mais um transe criativo que atualmente virou uma ferramenta, um objeto de pesquisa para mim, devido minhas experiências em desenvolver os mantos, explicou ela.
Segundo a artista o xamãnismo representado por esses mantos, em sua força e essência de ferramenta transitória, elemento com força e poder energético capaz de auxiliar a transcendência entre o céu e a terra, mente e corpo, foi se materializando por um lado por um momento de transe, da busca com algo maior, com o criador que para ela é quem pode criar o encantamento das obras e que leva para o público o momento de suspensão na hora em que este está apreciando uma obra de arte. Porém, Sandra Lapage assegura que este conceito não possui conotação religiosa: somos xamãs em busca de algo. As pessoas têm potenciais xamãnístcos, conscientemente ou não. E é sobre este potencial interior que nos mantêm conectados e também com o Criador, que me refiro. Daí, pensarmos o mundo como uma unidade, pois acredito que os atritos e os desequilíbrios emocionais, mentais, psicológicos, morais, estruturais e espirituais, seja um pouco essa perda de visão unificada do Universo, contou a artista.
Em suma, o xamanismo que caiu em seu colo no início como uma brincadeira, tomou uma proporção que saiu da materialidade e acabou entrando no campo da imaterialidade, cujo assunto está e continuará estando presente em tudo que envolve a envolve, pois a artista sente isso em sua essência e em sua vida.
Sempre fã da inteligência do escritor e admiradora de artistas que criam grandes volumes de obras com materiais simples, Sandra Lapage também desenvolve suas obras dentro deste perfil característico. Não só os variados e diferentes mantos, mas também obras que remetem a tapeçaria, máscaras e outros moldes vestíveis. Toda sua arte envolvida em conceitos ambientais invólucros em linguagens poéticas, oferecem obras que imprimem substâncias históricas sócio-culturais de vida e da vida de povos antigos e dos elementos estudados e pesquisados por ela. As obras que nos remetem à tapeçaria trazem alguns elementos que a artista muito aprecia e muito se interessa, por contar e fazer parte da construção e história de uma cultura: eu comecei a ver o tapete através das obras de uma artista colombiana “Olga do Amaral”, que na contramão dos materiais recicláveis, esta artesã usa folhas de ouro sobre linhos para fazer suas tapeçarias. A tapeçaria é uma arte milenar possuidora de uma carga histórica que muito me interessa. Então, a partir dos trabalhos dela, dentro da minha linha conceitual de materialidade e imaterialidade, comecei a desenvolver obras que são tapeçaria, mas que assim como as outras, podem desdobrar-se em instalações e (ou) esculturas de parede, explicou Sandra.
Podemos dizer que a mesma paixão e interesse se aplicam às máscaras que a artista cria, principalmente nesta fase pandêmica pelo qual o mundo atravessa. Só que antes de chegarmos a esta atual fase, Sandra Lapage contou que sua primeira máscara inspira-se levemente no carnaval veneziano: é uma coisa bem européia. Em uma determinada época, na Europa, antes do carnaval, as máscaras eram utilizadas nas danças pagãs celebrando a fuga da morte. Todos se escondiam para escapar da morte, usando as máscaras. E, até hoje, elas são usadas para esconder algo ou nós mesmos. Ao mesmo tempo, a máscara traz consigo a revelação de algo, sobre algo ou alguém. Até o fato da escolha da máscara, já revela algo. As máscaras, conjuntamente, são um meio de expressão que também estava escondido antes, disse ela.
Paralelo às expressões, revelações e ocultações que envolvem as máscaras, a artista vê no carnaval um lado que de alguma maneira deságua em transe, de momento xamãnico, de um transe atenuado onde a pessoa se deixa levar pelo momento da festa, da euforia… Um momento menos racional: apesar de ser um momento pontual na vida das pessoas o carnaval revela coisas que nós escondemos ou não sabíamos que estavam ali. Então, também é uma ferramenta de autoconhecimento e de conexão com os instintos mais básicos e com comportamentos que não foram polidos pela civilização. As máscaras tem uma força muito grande: ela revela e esconde. Ela fala de vida e fala de morte. Por isso a máscara é um componente muito forte para mim, afirmou Sandra.
As obras vestíveis são consideradas pela artista uma extensão das máscaras, onde não escondem o rosto, mas escondem o corpo. Segundo a artista, vem da idéia da repetição do trabalho do manto e da vontade em experimentá-las e vesti-las. Uma extensão lúdica que depois se materializou na possibilidade de performance: vestir estas esculturas para ver o que ocorreria.
Obras artísticas produzidas em larga escala que desdobram-se em esculturas e em obras vestíveis, a arte de Sandra Lapage, por tudo que nos oferece, viaja não só pelo Brasil, mas também Europa e EUA. A artista que fez residência em diversas Instituições internacionais como a “Fondation Château Mecier” (França), entre outras, também já foi visitante na “Tyler School Of Art”, na Filadélfia e no “Maine College Of Art & Desing”, em Portland , nos EUA. Participou de diversas Exposições coletivas e individuais, dentre elas na “Embaixada do Brasil” em Bruxelas (2007), no “Museu de Arte de Ribeirão Preto” pelo programa de exposições 2006, no “Centro Cultural São Paulo” pelo programa de exposições 2012, no “Gowanus Loft” (NYC) em 2014 e 2015, no “Museu de Arte de Blumenau” e na “Aura Arte Contemporânea” (São Paulo) em 2018, na galeria “Andrea Rehder” e “Museu de Arte de Ribeirão Preto” em 2019; e em 2020 no A60 “Contemporary Artspace” (IT), “Kunsthalle am Hamburguer Platz” (DE), “Centro Cultural Vale do Maranhão” (São Luis), “Surface Gallery” (Eng), “Tianjin International Digital Imaging Exhibition” (CN) e “CICA Museum” (KOR).
Recentemente Sandra Lapage esteve envolvida no Projeto Virtual “Em Louvor Da Magia”, que consistia em visitas virtuais à ateliês de algumas grandes, artistas femininas de todas as Américas, atuando como curadora e também tendo seu ateliê visitado.
Ousadia, inovação, criatividade, pró-atividade, arte que fala e que mostra em toda sua forma e conceito materialidade que expressa o imaterial e que imprime culturas de diferentes povos, suas histórias e fantasias, com a maestria da poesia, trazendo a beleza do saber e do entender do quanto temos a ganhar e a oferecer quando cuidamos das saúdes inseparáveis: mental, espiritual, física e planetária. Mas, mais do que isso, uma arte que sai de um “aparente” resumo para ampliação de emoções e sensações individuais e coletivas, pautadas em uma frase desta brilhante artista, que muito diz sobre o ser humano: Problema do lixo é imagem dos nossos excessos!
Viva Cultura: Sandra, muito obrigada pela entrevista, imenso prazer podermos apresentar e falar sobre sua arte para nossos leitores e para o público em geral.
Sandra Lapage: obrigada a Viva Cultura Revista Digital, pela entrevista e por ser um canal de fomento e divulgação da arte visual brasileira.
Tudo sobre Sandra Lapage em: @sclapage
NOTA: Todas as imagens gentilmente cedidas pela artista.
PRESTIGIE A ARTE BRASILEIRA!